Eu me solidarizei tanto com a autora, que resolvi compartilhar o texto...
É preciso ser uma fã autêntica, daquelas que beiram o ridículo para entender o que senti ao ver o Chico Buarque a alguns metros de mim. Conhecer os antecedentes talvez dê uma compreensão mais exata para as lágrimas abundantes e quase ininterruptas durante todo o show, o estado letárgico que me deixou colada à cadeira; as cólicas, antes de ele subir ao palco que me levaram ao banheiro várias vezes; o suor que escorria mesmo o ambiente sendo refrigerado; o enjoo que me impediu de comer ou beber algo mais que uma água mineral com gás.
O Chico é muito mais que um compositor que eu admiro, que eu gosto. Gosto demais também do Caetano, Gilberto Gil, João Bosco, Lulu Santos, mas nada se aproxima da ligação de mais de 40 anos com o homem dos olhos graúdos que brincam entre o azul e verde e sorriso de dentes grandes que me encantam desde a adolescência.
O primeiro contato deve ter sido por volta de 1971. O disco era Construção e entendi quase nada da rebuscada, ímpar e belíssima composição em proparoxítonas. Mas a paixão devastadora veio, lembro com exatidão, quando vi a capa do álbum Chico Buarque. O rosto dele em primeiro plano, um sorriso de canto de boca e ao fundo um monte de samambaias. Não cansava de olhar aquele rosto e as músicas aos poucos começaram a fazer sentido pra mim. Descobria o sexo e o Meu Amor era a tradução literal do amante que idealizava; Apesar de Você o hino que se manteve aprisionado em nossas gargantas ou Pedaço de Mim que, mesmo a maternidade ainda tão distante, me impactava com a frase” saudade é o revés de um parto, saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”.Era 1978/79.
A admiração pelo belo homem se ampliara para o incomparável compositor, o que conhece a alma das mulheres como poucos e poeticamente nos traduz por vezes meigas, dóceis ou sensuais, submissas, guerreiras. Nunca mais ele saiu da minha vida. Não tinha dinheiro para comprar seus vinis, nem tinha eletrola para ouvi-los. Mas as fitas cassetes, que os amigos gravavam pra mim socializando a cultura dos anos 70/80, me permitiram acompanhá-lo de perto. Fui amadurecendo a relação. De tietê ortodoxa passei a uma devoradora de tudo o que fosse mais profundo sobre ele. Teses de mestrado, seus livros, análises de suas composições e o impacto político que causaram, seu engajamento contra a ditadura e obviamente sua vida particular com a Marieta Severo e as filhas Sílvia, Helena e Luísa.
Amadureci, tive filhos, casei (nessa ordem mesmo!) e ele continuou sendo um companheiro platônico, presente, sempre ao lado, vivo, que não escreve para mim, mas é assim que sinto-me quando ouço Querido Diário, do último CD – “Hoje topei com alguns conhecidos meus Me dão bom-dia, cheios de carinho Dizem para eu ter muita luz, ficar com Deus Eles têm pena de eu viver sozinho”. Envelhecemos juntos...
Não me limitei a ouvir suas músicas, a sonhar com seus olhos ou a devorar seus livros. No meu casamento, em dezembro de 2001,ao entrar na pequena capela no Chapéu Virado, em Mosqueiro, não foi a valsa de Félix Mendelssohn-Bartholdy que me recebeu, mas Eu te Amo (Ah, se já perdemos a noção da hora Se juntos já jogamos tudo fora Me conta agora como hei de partir). Na festinha de 50 anos (os amigos que lá estiveram lembram-se bem) a minha casa, em Canudos, transformou-se em um barzinho e eu, ilusoriamente, comemorei as cinco décadas ao lado dos filhos, marido, mãe, irmãos, amigos e do Chico. Alexandre Souza, o melhor cover dele, fez um show exclusivo e, de novo, me iludi que estava ao lado do Chico. Meus animais domésticos sempre receberam nomes em homenagem a ele: Buarque, o gato persa; Miúcha, a salsichinha; Bebel, a filha dela e mais recentemente a labrador, Lia, uma das netas mais novas do Chico.
Tudo isso (e muito mais!) talvez explique o que vivi dia 2 de março, no Teatro HSBC, em São Paulo. Tudo tão impensável até recentemente. Morar em Belém do Pará me deixava muito distante de um show do Chico.Em 2008, ao deixar minha cidade amada e juntar meus escombros no interior de SP não sabia que estava me aproximando da realização do sonho. Estou agora a pouco mais de 300km da maior cidade da América do Sul e lá tudo acontece, inclusive uma longa temporada de Chico Buarque. Em dezembro adquiri os convites (meu e da Anaterra Dantas) e comecei a navegar entre Genis e Sinhás.
E ele aconteceu! As palavras são pequenas diante da grandiosidade do que senti. Era ele em carne e osso a alguns metros de mim. Não fui para próximo do palco, aplaudi pouco, gritei quase nada, mas intimamente era um poço de emoções. Cada música mais antiga um trailer de um filme mofado do passado. Amores, amigos, situações adormecidas e lágrimas, muitas lágrimas. O homem de estatura mediana (mais pra baixo do que para alto); magro, de barriga muito pronunciada para o corpo esguio, de roupas escuras, sorriso largo, mas de pouca interatividade com o público estava à minha frente, a alguns poucos passos de mim. Não era a única a estar hipnotizada. Nas mesas, homens e mulheres, idosos ou jovens, sorviam cada estrofe e cantavam... cantavam... até sentiram a garganta seca ou o ar faltar. Eu sussurrava ...
Flutuava ao deixar o teatro, sem cólicas, sudoreses, apenas com a marca das lágrimas que borraram a maquiagem. Dia seguinte uma felicidade que deixei me envolver demorando mais do que o necessário na cama. Eu estive mesmo naquele lugar ou apenas vi um vídeo? Ainda relutava em acreditar. Felicidade ou dor em demasia nos deixam assim, em transe.
Podem trazer a camisa de força, o surto ainda não passou. Desde então SÓ ouço Chico!
TEXTO DE ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA - Escritora