Recebi hoje um e-mail do meu marido. Estranhei porque raramente o Rafa me manda alguma coisa pela internet. Abri e encontrei o texto abaixo, com uma declaração de amor. Esse tipo de delicadeza que a gente tem com o ser amado me emociona. É com esses pequenos mimos que a gente cativa o amor. O texto eu não sei se é do Chico mesmo, mas ainda vale a postagem.
Amor, amo você como naquele pôr-do-sol de 27 de maio de 2006.
Solidão
Solidão não é falta de gente para conversar, namorar, passear, fazer sexo.....
isto é carência.
Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência de entes queridos que não podem mais voltar.....
isto é saudade.
Solidão não é o retiro voluntário que a gente se impõe, às vazes, para realinhar os pensamentos....
isto é equilíbrio.
Solidão não é o claustro involuntário que o destino nos impõe compulsoriamente para que revejamos a nossa vida....
isto é um princípio da natureza
Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado...
isto é circunstância.
Solidão é muito mais que isso. solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma.
Francisco Buarque de Holanda
terça-feira, 22 de junho de 2010
Saramago e a Copa
Eu, Ana Cristina dos Santos Malfacini, cidadã brasieira, professora, uma das últimas pessoas do planeta a acreditar em valores éticos e morais, venho divulgar minha nota de repúdio a esta sociedade que pretere a homenagem à genialidade de um homem que se vai frente a um evento como a Copa do Mundo de 2010. Como ser pensante, acrescento que programas como a "Central da Copa", em que o apresentador fala mais bobagem do que qualquer outra coisa, me ofendem, e mais ainda me ofende uma ética em que o futebol passa a ser o centro das atenções do universo. A Saramago, fica aqui minha homenagem póstuma. Sem mais, subscrevo-me.
Ana Malfacini
Ana Malfacini
quinta-feira, 10 de junho de 2010
Equilibradora de Pratos II (ou a História dos Aindas)
Acordo às 4 da manhã e dou mamar (no peito) para o Artur. Às quartas ainda levanto às 4 e 30 para ir para o Rio trabalhar. Saio de casa às 5 para estar lá às 9. Pego três horas de engarrafamento e só volto para casa às 11 da noite. Em outros dias, divido a minha manhã com um Johan escorregadio que não quer fazer seus trabalhos de casa e com uma Eni chorosa da pressão alta e das dores de coluna. Terça e sexta tem a Bá aqui em casa para cuidar de todos, mas nos outros dias estamos entregues à sorte, porque a filha da Marina internou pra ter bebê (logo, ficaram suspensas as faxinas até segunda ordem). Quem tem me ajudado a segurar a onda é o Super-Rafa, meu supermarido-amigo-namorado, que tem sido ninja para se desdobrar em tudo (Amor, nunca vou poder retribuir com palavras todo o carinho que você tem me dado...).
Estou dando, ainda, aula de Português, Literatura e Redação para o Ensino Médio. Como eu não trabalhava Literatura fazia um tempão, estou estudando tudo de novo. Agora, por exemplo, acabei de ler Clarissa (E. Veríssimo), estou relendo Senhora (José de Alencar) e ainda estou lendo um livro pro Doutorado (Desabrigo e outros trecos, do Antonio Fraga). A tese eu deixei um pouco de lado, junto com o projeto de escrever dois livros - o de Produção Textual e o de poemas e contos: não estou dando conta desses projetos.
Artur e Johan estão com problemas alimentares. O Tutu trocou de leite e tem sofrido para fazer cocô. O Johan, limpa-trilho, está comendo até as paredes e não tem saído do banheiro. Ambos entraram de dieta. A mãe precisa retomar a dela correndo...
O carro tem de licenciar. Falta fazer a vistoria do gás. Minha licença para dirigir venceu. Para renovar, vou ter de me matricular na autoescola de novo, fazer prova escrita e ainda pagar por outro exame de vista.
Na faculdade, estou corrigindo os TCCs dos meninos. Todos me mandaram tudo na última semana, mais de 500 páginas para ler. Semana que vem tem banca e os alunos estão desesperados. Aparecerão mais uns 10 trabalhos ainda na minha caixa de e-mails. Na minha casa ainda tem uns 3 pacotes de prova para corrigir, não consegui pegar nenhum.
Hoje não consegui ir para a aula do Doutorado porque não tinha com quem deixar o filho menor, já que minha mãe está passando mal e o Rafa foi trabalhar. O filho mais velho tem festa do melhor amigo para ir e, ainda, alguém tem de ir pegar às 10 p. m. O carro teve de ficar na revisão. Estou literalmente a pé.
Agora, Artur dorme. A loja de móveis me liga dizendo que talvez chegue hoje a mobília comprada há um mês. O atraso foi culpa do frete, que veio de Santa Catarina. Ainda devo ficar presa em casa esperando o montador, para o quarto da Eni finalmente ficar pronto. Tenho de tirar as caixas da mudança ainda fechadas para os móveis e homens entrarem. A casa vai ficar numa bagunça ainda maior.
Na pia, a pilha de louças me olha enquanto digito meu texto... E ainda teve gente que me perguntou por que escolhi o nome Equilibradora de Pratos...
Estou dando, ainda, aula de Português, Literatura e Redação para o Ensino Médio. Como eu não trabalhava Literatura fazia um tempão, estou estudando tudo de novo. Agora, por exemplo, acabei de ler Clarissa (E. Veríssimo), estou relendo Senhora (José de Alencar) e ainda estou lendo um livro pro Doutorado (Desabrigo e outros trecos, do Antonio Fraga). A tese eu deixei um pouco de lado, junto com o projeto de escrever dois livros - o de Produção Textual e o de poemas e contos: não estou dando conta desses projetos.
Artur e Johan estão com problemas alimentares. O Tutu trocou de leite e tem sofrido para fazer cocô. O Johan, limpa-trilho, está comendo até as paredes e não tem saído do banheiro. Ambos entraram de dieta. A mãe precisa retomar a dela correndo...
O carro tem de licenciar. Falta fazer a vistoria do gás. Minha licença para dirigir venceu. Para renovar, vou ter de me matricular na autoescola de novo, fazer prova escrita e ainda pagar por outro exame de vista.
Na faculdade, estou corrigindo os TCCs dos meninos. Todos me mandaram tudo na última semana, mais de 500 páginas para ler. Semana que vem tem banca e os alunos estão desesperados. Aparecerão mais uns 10 trabalhos ainda na minha caixa de e-mails. Na minha casa ainda tem uns 3 pacotes de prova para corrigir, não consegui pegar nenhum.
Hoje não consegui ir para a aula do Doutorado porque não tinha com quem deixar o filho menor, já que minha mãe está passando mal e o Rafa foi trabalhar. O filho mais velho tem festa do melhor amigo para ir e, ainda, alguém tem de ir pegar às 10 p. m. O carro teve de ficar na revisão. Estou literalmente a pé.
Agora, Artur dorme. A loja de móveis me liga dizendo que talvez chegue hoje a mobília comprada há um mês. O atraso foi culpa do frete, que veio de Santa Catarina. Ainda devo ficar presa em casa esperando o montador, para o quarto da Eni finalmente ficar pronto. Tenho de tirar as caixas da mudança ainda fechadas para os móveis e homens entrarem. A casa vai ficar numa bagunça ainda maior.
Na pia, a pilha de louças me olha enquanto digito meu texto... E ainda teve gente que me perguntou por que escolhi o nome Equilibradora de Pratos...
terça-feira, 8 de junho de 2010
AS VERDADEIRAS MULHERES FELIZES, da Martha Medeiros, maravilhosa!!!
As verdadeiras mulheres felizes - Martha Medeiros
Acabo de ler um livro de Eliette Abecassis, uma francesa que eu não conhecia. O nome da obra, no original, é Un Heureux Événement, que pode ser traduzido para Um Feliz Acontecimento, mas é um título irônico, pois o livro trata sobre o fator que, segundo a autora, destrói as relações amorosas: o nascimento de um filho. Num tom exageradamente desesperado, a personagem narra o fim do seu casamento depois que dá à luz. Concordo que a chegada de uma criança muda muita coisa entre o casal, mas a escritora carrega nas tintas e cria um quadro de terror para as mães de primeira viagem. Se o nascimento de um filho é sempre desconcertante, é preciso lembrar que é, ao mesmo tempo, uma emoção sem tamanho. De minha parte, só tenho bons momentos a recordar, nada foi dramático. Mas mesmo que, por experiência própria, eu não compartilhe com a desolação da autora, ainda assim ela diz no livro uma frase muito interessante. Ao enumerar as diversas mazelas por que passam as criaturas do sexo feminino, ela me veio com esta: "os homens são as verdadeiras mulheres felizes".
Atente para a sutileza da frase. O que ela quis dizer? Que os homens saem pela porta de manhã e vão trabalhar sem pensar se os filhos estão bem agasalhados ou se fizeram o dever da escola. Os homens não menstruam, não têm celulite, não passam por alterações hormonais que detonam o humor. Os homens não se preocupam tanto com o cabelo e não morrem de culpa quando não telefonam para suas mães. Os homens comem qualquer coisa na rua e o cardápio do jantar não é da sua conta, a não ser quando decidem cozinhar eles próprios, e isso é sempre um momento de lazer, nunca um dever. Os homens não encasquetam tanto, são mais práticos. Eu, que estou longe de ser uma feminista e mais longe ainda de ser ranzinza, tenho que reconhecer o brilhantismo da frase: os homens são mulheres felizes. Eles fazem tudo o que a gente gostaria de fazer: não se preocupam em demasia com nada.
Porque nosso mal é este: pensar demais. Nós, as reconhecidas como sensíveis e afetivas, somos, na verdade, máquinas cerebrais. Alucinadamente cerebrais. Capazes de surtar com qualquer coisa, desde as mínimas até as muito mínimas. Somos mulheres que nunca estão à toa na vida, vendo a banda passar, e sim atoladas em indagações, tentando solucionar questões intrincadas, de olho sempre na hora seguinte, no dia seguinte, planejando, estruturando, tentando se desfazer dos problemas, sempre na ativa, sempre atentas, sempre alertas, escoteiras 24 horas.
Os homens, mesmo quando muito ocupados, são mais relax. Focam no que têm que fazer e deixam o resto pra depois, quando chegar a hora, se chegar. Não tentam salvar o mundo de uma tacada só. E a chegada de um filho, ainda que assuste a eles, como assusta a todos, é algo para se lidar com calma, é um aprendizado, uma curtição, nada de muito caótico. Eles não precisam dar de mamar de duas em duas horas, não ficam fora de forma, não enlouquecem. Isso é uma dádiva: os homens raramente enlouquecem.
Nós, nem preciso dizer. Nascemos doidas. Por isso somos tão interessantes, é verdade, mas felicíssimas, só de vez em quando, nas horas em que não nos exigimos desumanamente. Homens, portanto, são realmente as verdadeiras mulheres felizes. Que isso sirva de homenagem aos queridos, e sirva pra rir um pouco de nós mesmas, as que se agarram com unhas e dentes ao papel de vítimas porque ainda não aprenderam a ser desencanadas como eles.
Acabo de ler um livro de Eliette Abecassis, uma francesa que eu não conhecia. O nome da obra, no original, é Un Heureux Événement, que pode ser traduzido para Um Feliz Acontecimento, mas é um título irônico, pois o livro trata sobre o fator que, segundo a autora, destrói as relações amorosas: o nascimento de um filho. Num tom exageradamente desesperado, a personagem narra o fim do seu casamento depois que dá à luz. Concordo que a chegada de uma criança muda muita coisa entre o casal, mas a escritora carrega nas tintas e cria um quadro de terror para as mães de primeira viagem. Se o nascimento de um filho é sempre desconcertante, é preciso lembrar que é, ao mesmo tempo, uma emoção sem tamanho. De minha parte, só tenho bons momentos a recordar, nada foi dramático. Mas mesmo que, por experiência própria, eu não compartilhe com a desolação da autora, ainda assim ela diz no livro uma frase muito interessante. Ao enumerar as diversas mazelas por que passam as criaturas do sexo feminino, ela me veio com esta: "os homens são as verdadeiras mulheres felizes".
Atente para a sutileza da frase. O que ela quis dizer? Que os homens saem pela porta de manhã e vão trabalhar sem pensar se os filhos estão bem agasalhados ou se fizeram o dever da escola. Os homens não menstruam, não têm celulite, não passam por alterações hormonais que detonam o humor. Os homens não se preocupam tanto com o cabelo e não morrem de culpa quando não telefonam para suas mães. Os homens comem qualquer coisa na rua e o cardápio do jantar não é da sua conta, a não ser quando decidem cozinhar eles próprios, e isso é sempre um momento de lazer, nunca um dever. Os homens não encasquetam tanto, são mais práticos. Eu, que estou longe de ser uma feminista e mais longe ainda de ser ranzinza, tenho que reconhecer o brilhantismo da frase: os homens são mulheres felizes. Eles fazem tudo o que a gente gostaria de fazer: não se preocupam em demasia com nada.
Porque nosso mal é este: pensar demais. Nós, as reconhecidas como sensíveis e afetivas, somos, na verdade, máquinas cerebrais. Alucinadamente cerebrais. Capazes de surtar com qualquer coisa, desde as mínimas até as muito mínimas. Somos mulheres que nunca estão à toa na vida, vendo a banda passar, e sim atoladas em indagações, tentando solucionar questões intrincadas, de olho sempre na hora seguinte, no dia seguinte, planejando, estruturando, tentando se desfazer dos problemas, sempre na ativa, sempre atentas, sempre alertas, escoteiras 24 horas.
Os homens, mesmo quando muito ocupados, são mais relax. Focam no que têm que fazer e deixam o resto pra depois, quando chegar a hora, se chegar. Não tentam salvar o mundo de uma tacada só. E a chegada de um filho, ainda que assuste a eles, como assusta a todos, é algo para se lidar com calma, é um aprendizado, uma curtição, nada de muito caótico. Eles não precisam dar de mamar de duas em duas horas, não ficam fora de forma, não enlouquecem. Isso é uma dádiva: os homens raramente enlouquecem.
Nós, nem preciso dizer. Nascemos doidas. Por isso somos tão interessantes, é verdade, mas felicíssimas, só de vez em quando, nas horas em que não nos exigimos desumanamente. Homens, portanto, são realmente as verdadeiras mulheres felizes. Que isso sirva de homenagem aos queridos, e sirva pra rir um pouco de nós mesmas, as que se agarram com unhas e dentes ao papel de vítimas porque ainda não aprenderam a ser desencanadas como eles.
segunda-feira, 7 de junho de 2010
Curriculum Vitae (Conto)
Palavra. Vocábulo. Sei lá. A vida de Rosa era assim: muita palavra, muita explicação; tautologia. Na verdade, ela era obcecada pela palavra ideal, o momento certo de dizer a coisa certa - ou correta, melhor no contexto, para aprimorar a coesão textual. Algo assim, para entendermos sua excessiva preocupação metalingüística.
Esta era Rosa. Dois filhos, um menino e uma menina, um poodle e um marido que lhe era indiferente (com o pronome propositadamente ambíguo). Rosa era professora de Português, com matrícula no Estado e no Município, com algumas dezenas de tempos em escolas particulares de sua cidade e pouco tempo, muito pouco tempo para si e para os seus. Nas lacunas, o que sobrava do restrito tempo em casa (algo entre meia-noite e quatro da manhã), fumava (escondido) e se dedicava à palavra: estudos teóricos do léxico português.
Era feliz. Ou pensava ser, até receber aquela proposta, que na hora a fez encher-se de orgulho e logo depois de terror. A amiga professora de Matemática lhe avisara do concurso literário que haveria na região, uma excelente oportunidade de mostrar a todos seu talento e sua acurada percepção lingüística. A princípio, envaideceu-se com o convite, com o reconhecimento profissional...depois, desesperou-se, de tal forma que a colega atenta quase percebeu seu ligeiro rubor de face.
O que escrever? Qual seria o tema de seu texto? O que descrever, narrar ou dissertar? De repente, Rosa percebeu o que deveria ser-lhe óbvio desde sempre: a dolorosa percepção de que não havia assunto para escrever! Nesse fragmento de segundo, sua vida lhe passara à frente e vira centenas de cenas desfocadas em preto e branco: sua infância fora mesquinha e solitária, escondida atrás de brinquedos que nunca usara por medo de estragarem-se; sua escolha universitária foi feita por seus pais, porque moças de família só poderiam, quando muito, ser professoras; seu marido era, por conveniência, o irmão do noivo da prima, um bem sucedido e inculto comerciante local, a quem nunca amou; seus filhos nasceram sem lhe causarem dor, ou qualquer outro sentimento que os unisse além dos cordões umbilicais; seus pais eram velhos e sadios, sem nenhuma morte próxima que viesse lhe causar trauma, pena, sofrimento ou aprendizagem, ou qualquer coisa da qual ela pudesse tirar uma lição de vida realmente interessante.
Olhou o papel em branco e sentiu pena de sua vida enfadonha e correta. Nenhum amor, nenhuma aventura, nenhum erro, nada havia em sua frente, senão um cotidiano correto e metódico. Durante horas olhou o caderno pautado, até que as linhas azuis borraram-lhe os olhos e misturaram-se entre si. Dos livros que leu, das pessoas que conheceu, não conseguira extrair nada que pudesse lhe servir como tema. Pensou em escritores famosos e teve raiva, inveja de todos eles. Pensou em obras lidas, relidas, contadas e reescritas, nada valeu. Uma madrugada inteira sem que uma palavra lhe brotasse na mente.
Falta de inspiração, só podia ser falta de inspiração. Nada que um dia de trabalho não resolvesse. Com as crianças, certamente adviria uma idéia brilhante ou uma fagulha de reflexão a desdobrar. Só que, a cada minuto do dia, sua angústia só aumentava, ao ver palavras multiplicando-se de seus lábios, que de nada valiam ser escritas. Para quê? O concurso literário pressupunha, como o próprio nome dizia, literatura, e naquele momento o que a incomodava vorazmente era perceber que sua vida virara...gramática! Um conjunto de regras e exceções voltadas para uma modalidade culta, algo que aqueles alunos famintos e carentes não atingiam, o que os fazia a cada dia menores, devido àquele abismo lingüístico que os separava e que – ela tinha que confessar – a enchia de prazer e satisfação, até aquele momento.
Faltou-lhe o chão aos pés. De que adiantavam os adjuntos e os complementos nominais, se não lhe davam um assunto, uma literatura? (por mais que tivesse tentado fazer uma poesia com eles!). De que adiantavam os anos a fio em sala de aula, ensinando todos os filhos da cidade a escrever, se ela própria não sabia redigir um texto realmente seu, com suas idéias? Onde estava sua imaginação, se só no que pensava era corrigir e corrigir o que os outros diziam ou escreviam?
A dor que sentiu naquele momento talvez tenha sido a pior de sua vida inteira. Um misto de angústia, de piedade, de frustração por aquela vida pequena, desinteressante, escondida atrás de livros alheios em uma cidade do interior. Foi difícil perceber que as palavras, as quais ela sempre buscou e perseguiu, nunca lhe vinham na hora adequada porque ela simplesmente... não as sentia, não as vivia! Sua relação com elas era mecânica, artificial, passível de correções de certo e errado. Não eram as palavras quentes que enebriam poetas ou que arrebatavam bocas úmidas de namorados adolescentes. Não eram os gritos das crianças que brincam nas praças, ou a comemoração enérgica dos torcedores de futebol. Não eram as confissões arrependidas, ou o grito de prazer e dor de amantes apaixonados e lancinantes. Suas palavras não tinham vida, porque ela não tinha vida. A falta de vivacidade de suas palavras representava seu fracasso, o seu modo de viver, o grande cinza que era seu cotidiano.
Teve vontade de correr para um lugar que não existe, longe de tudo e de todos para viver uma vida sua, sem medo da opinião dos pais, filhos, marido, vizinhos, amigos, parentes, colegas, alunos, etc. A vontade passou e ela continuou sua rotina exatamente do jeito que era. O concurso literário era uma bobagem de jovens idealistas e verborrágicos. Coisa boba e desnecessária. Voltemos às aulas de Gramática.
Esta era Rosa. Dois filhos, um menino e uma menina, um poodle e um marido que lhe era indiferente (com o pronome propositadamente ambíguo). Rosa era professora de Português, com matrícula no Estado e no Município, com algumas dezenas de tempos em escolas particulares de sua cidade e pouco tempo, muito pouco tempo para si e para os seus. Nas lacunas, o que sobrava do restrito tempo em casa (algo entre meia-noite e quatro da manhã), fumava (escondido) e se dedicava à palavra: estudos teóricos do léxico português.
Era feliz. Ou pensava ser, até receber aquela proposta, que na hora a fez encher-se de orgulho e logo depois de terror. A amiga professora de Matemática lhe avisara do concurso literário que haveria na região, uma excelente oportunidade de mostrar a todos seu talento e sua acurada percepção lingüística. A princípio, envaideceu-se com o convite, com o reconhecimento profissional...depois, desesperou-se, de tal forma que a colega atenta quase percebeu seu ligeiro rubor de face.
O que escrever? Qual seria o tema de seu texto? O que descrever, narrar ou dissertar? De repente, Rosa percebeu o que deveria ser-lhe óbvio desde sempre: a dolorosa percepção de que não havia assunto para escrever! Nesse fragmento de segundo, sua vida lhe passara à frente e vira centenas de cenas desfocadas em preto e branco: sua infância fora mesquinha e solitária, escondida atrás de brinquedos que nunca usara por medo de estragarem-se; sua escolha universitária foi feita por seus pais, porque moças de família só poderiam, quando muito, ser professoras; seu marido era, por conveniência, o irmão do noivo da prima, um bem sucedido e inculto comerciante local, a quem nunca amou; seus filhos nasceram sem lhe causarem dor, ou qualquer outro sentimento que os unisse além dos cordões umbilicais; seus pais eram velhos e sadios, sem nenhuma morte próxima que viesse lhe causar trauma, pena, sofrimento ou aprendizagem, ou qualquer coisa da qual ela pudesse tirar uma lição de vida realmente interessante.
Olhou o papel em branco e sentiu pena de sua vida enfadonha e correta. Nenhum amor, nenhuma aventura, nenhum erro, nada havia em sua frente, senão um cotidiano correto e metódico. Durante horas olhou o caderno pautado, até que as linhas azuis borraram-lhe os olhos e misturaram-se entre si. Dos livros que leu, das pessoas que conheceu, não conseguira extrair nada que pudesse lhe servir como tema. Pensou em escritores famosos e teve raiva, inveja de todos eles. Pensou em obras lidas, relidas, contadas e reescritas, nada valeu. Uma madrugada inteira sem que uma palavra lhe brotasse na mente.
Falta de inspiração, só podia ser falta de inspiração. Nada que um dia de trabalho não resolvesse. Com as crianças, certamente adviria uma idéia brilhante ou uma fagulha de reflexão a desdobrar. Só que, a cada minuto do dia, sua angústia só aumentava, ao ver palavras multiplicando-se de seus lábios, que de nada valiam ser escritas. Para quê? O concurso literário pressupunha, como o próprio nome dizia, literatura, e naquele momento o que a incomodava vorazmente era perceber que sua vida virara...gramática! Um conjunto de regras e exceções voltadas para uma modalidade culta, algo que aqueles alunos famintos e carentes não atingiam, o que os fazia a cada dia menores, devido àquele abismo lingüístico que os separava e que – ela tinha que confessar – a enchia de prazer e satisfação, até aquele momento.
Faltou-lhe o chão aos pés. De que adiantavam os adjuntos e os complementos nominais, se não lhe davam um assunto, uma literatura? (por mais que tivesse tentado fazer uma poesia com eles!). De que adiantavam os anos a fio em sala de aula, ensinando todos os filhos da cidade a escrever, se ela própria não sabia redigir um texto realmente seu, com suas idéias? Onde estava sua imaginação, se só no que pensava era corrigir e corrigir o que os outros diziam ou escreviam?
A dor que sentiu naquele momento talvez tenha sido a pior de sua vida inteira. Um misto de angústia, de piedade, de frustração por aquela vida pequena, desinteressante, escondida atrás de livros alheios em uma cidade do interior. Foi difícil perceber que as palavras, as quais ela sempre buscou e perseguiu, nunca lhe vinham na hora adequada porque ela simplesmente... não as sentia, não as vivia! Sua relação com elas era mecânica, artificial, passível de correções de certo e errado. Não eram as palavras quentes que enebriam poetas ou que arrebatavam bocas úmidas de namorados adolescentes. Não eram os gritos das crianças que brincam nas praças, ou a comemoração enérgica dos torcedores de futebol. Não eram as confissões arrependidas, ou o grito de prazer e dor de amantes apaixonados e lancinantes. Suas palavras não tinham vida, porque ela não tinha vida. A falta de vivacidade de suas palavras representava seu fracasso, o seu modo de viver, o grande cinza que era seu cotidiano.
Teve vontade de correr para um lugar que não existe, longe de tudo e de todos para viver uma vida sua, sem medo da opinião dos pais, filhos, marido, vizinhos, amigos, parentes, colegas, alunos, etc. A vontade passou e ela continuou sua rotina exatamente do jeito que era. O concurso literário era uma bobagem de jovens idealistas e verborrágicos. Coisa boba e desnecessária. Voltemos às aulas de Gramática.
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