ESTADO DE SP – 17-09-2001
Morar numa ilha tem uma porção de vantagens. Principalmente quando você olha pela janela e vê o Brasil lá do outro lado. Fica parecendo que a coisa não é com a gente. Tá sempre nublado para aquele lado.
Na semana passada eu olhava e pensava que não apenas o Brasil estava do lado de lá. Mas toda a América. Infelizmente sem os dois falos, as duas torres a menos. Mas não é sobre a simbólica decepação sexual que os irmãozinhos americanos sofreram que eu quero falar. Eu queria falar de outro tipo de paz que se sente vivendo ilhado. Queria dar um exemplo contundente. Até que o exemplo aconteceu ontem, na minha frente, diante do meu carro.
Vinha eu voltando do aeroporto Hercílio Luz (preciso descobrir quem foi esse cara. Aqui tudo é Hercílio e luz) por uma rua estreita, mas com aquelas zebras. Na calçada um cachorro esperando os carros pararem para ele atravessar a rua. Eis que o sujeito que vinha na minha direção parou o carro dele. Para o cachorro? Então eu parei o meu. E (pasmem!) o cachorro atravessou na faixa. Calmamente, sem olhar para os lados, sabendo que podia confiar. É isso: aqui os cachorros atravessam a rua na faixa. Eu fiquei tão espantado com aquilo que fiz um sinal de positivo para o motorista do outro lado. Aí foi ele que não entendeu meu gesto. Ou seja: é normal aqui. Acredite quem quiser.
Outra coisa que aconteceu aqui. Comprei um criado-mudo numa loja genial chamada Usina das Artes, que trabalha com madeira de demolição. Ontem abro o jornal Diário Catarinense (o mundo é diário, diz o slogan) e tem uma matéria sobre a tal loja. E vejo lá uma foto do meu criado-mudo. Com a seguinte legenda:
- Esta mesa-de-cabeceira foi batizada de "Mesa de Apoio Mario Prata". O famoso (sic) escritor paulista, que está residindo na Ilha, comprou uma igual para colocar os originais de seus livros.
Pronto, virei criado-mudo! Além de criado, mudo! E posso garantir que não são bem os meus originais que eu coloco ali nas gavetinhas ao lado da minha cama. Criado-mudo tem de tudo (né?), menos originais.
E eu fico a imaginar, como naquela propaganda da Cônsul: põe na Cônsul!, a mulher gritando para o marido: põe no Mario Prata.
Onde está a tesourinha? Tá no Mario Prata! Já limpou o Mario Prata hoje? Não se acha nada aqui no Mario Prata! Esse Mario Prata está a maior sujeira! E por aí vou eu de madeira reciclada e três gavetas.
Eu já era bolsinha. Se você entrar numa busca pela Internet com o meu nome vai cair numa fábrica de bolsas lá de Birigüi. Meu advogado não consegue acionar os caras porque sempre ri quando liga para lá e uma mocinha atende dizendo: Bolsas Mario Prata, bom dia! Ele cai na gargalhada.
Sou também uma sala de vídeo em Lins. Menos mal.
Quarenta anos de profissão para virar sala, bolsa e criado-mudo? Não que eu queira virar nome de praça, rua, ou teatro. Mesmo porque rua e praça só depois de morto. Isola. Bati três vezes aqui na madeira reciclada.
Bem, podia ser pior. Privada Mario Prata. Parafuso MP. Camisinha Pratinha. Óculos Mario Alberto. Não tinha os óculos Ronaldo?
Pois a vida aqui é assim. Cachorro atravessa na faixa e o cidadão aqui guarda as bugigangas ao lado da cama, dentro de mim.
Agora, cá entre nós, que o criado-mudo é lindo, isto é. E sei que tudo isso foi uma demonstração de carinho comigo. Aqui na ilha é assim. Paz e luz, diria um evangélico.
PS.: Fui olhar agora lá na Barsa quem foi o Hercílio Luz. Está escrito lá:
- Hercílio Luz, ponte. Ponte metálica construída em 1927, para ligar ao continente a cidade de Florianópolis, localizada na Ilha de Santa Catarina. Extensão: 820 m
Nenhum comentário:
Postar um comentário