sexta-feira, 28 de maio de 2010

Gaivotas de Papel

Não lhe parece tão distante a lembrança de seu primeiro livro. O ano era 1977 e ele lhe fora dado como um presente por seus primeiros passos na leitura. A história (estória?) remota tratava de uma família de ursos que era visitada por uma menina de cabelos anelados, com fios tão dourados quanto os seus. O presente foi comemorado e datado com o mês do ano, grafado com uma caneta esferográfica de cor azul que há muito borrara o papel. Mas as manchas não foram suficientes para apagar a lembrança a qual hoje lhe vêem à mente. Sua sensação era a de uma expectadora invisível do passado que, como em terceira pessoa, voltasse à cena, assistindo de fora à sua premiação.
Livros lhe foram, desde então, pontuando momentos de glória – e terror. Não fora ainda na década de 80 que recebera sua primeira surra, de todas a mais violenta e humilhante. A surra que levara com um livro e por ele. Já seria difícil acreditar que seu maior algoz era o ventre que lhe pusera no mundo. Mais difícil seria supor que fosse alvejada por seu objeto de paixão. A mãe desfolhara a primeira cartilha em seu rosto e, a cada página caída, uma lágrima e um vergão que seria apenas suturado com a costura dos abecês posteriormente lhe ensinados. Logo ela que nunca havia imaginado que gaivotas de papel voando pela janela do prédio residencial tivessem um gosto tão amargo...
Mas entre as lembranças que escolheu para fazer de sua vida um conto-de-fadas, trouxe consigo, mesmo após décadas, a coleção de folhas revestidas e papel couché dos clássicos da literatura infantil. Não que já não conhecesse de longa data os personagens e as estórias, as tramas e seus desfechos: eles já eram velhos conhecidos que ora lhe passeavam em sonhos, ora lhe apareciam nos desenhos coloridos a trinta e seis lápis de cor. Só que, em sua coleção, tudo era perfeito e diferente. Aquela fora a primeira vez que vira personagens animados em livros. O papel que retratara o movimento, importado de algum país estrangeiro, mostrava à menina de subúrbio que nem tudo estava perdido. Sim, havia magia nos livros. Sim, gaivotas de papel poderiam ser doces. Sim, sua história também poderia ser cerzida a flores e pássaros, príncipes e princesas, todos felizes para sempre.
Toda essa profusão de sentimentos não durou mais que cinco segundos em sua lembrança. A visita à antiga residência no apartamento em que gaivotas não eram assim tão amargas trouxe-lhe à baila toda a infância. Seus livros foram redescobertos e com eles toda a sua história, as suas estórias, a dela e a deles... Ou seriam as nossas?
Foi com nostalgia, raiva e emoção, muita emoção, que desensacou, do guarda-roupa de solteira, um monte de livros de capa-dura há anos recolhido no armário, todos dentro de um saco que poderia ter embalado o lixo e não tantas recordações. Reviu, então, após milhares de dias e tantas outras cicatrizes, aqueles personagens animados que lhe figuraram a infância. Cheirou-os, apalpou-os, sorveu-os com a mesma curiosidade de há trinta anos. Uma lágrima poderia ter-lhe saltado dos olhos, não fosse a voz doce e meiga de criança curiosa, eufórica com a sua também descoberta:
- São para mim, mãe?
- São, meu filho. E eles esperaram por você uma vida toda...

(Esse texto é de minha autoria, escrito para um concurso de contos. Não sei em que data foi escrito, mas o ano foi 2005)

Um comentário:

  1. Ah meudeusdocéu! Fiquei aqui imaginando a cena no seu quarto de solteira, eu sentada na cama encostada na parede olhando você abrir livro por livro, seu anjo entrando todo espevitado e falante - mais que o homem da cobra...rs - e se apaixonando por suas histórias de antes dele chegar.
    Amei seus escritos, lindinha.
    Beijo grande
    Can

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