Palavra. Vocábulo. Sei lá. A vida de Rosa era assim: muita palavra,
muita explicação; tautologia. Na verdade, ela era obcecada pela palavra
ideal, o momento certo de dizer a coisa certa - ou correta, melhor no
contexto, para aprimorar a coesão textual. Algo assim, para entendermos
sua excessiva preocupação metalingüística.
Esta era Rosa. Dois
filhos, um menino e uma menina, um poodle e um marido que lhe era
indiferente (com o pronome propositadamente ambíguo). Rosa era
professora de Português, com matrícula no Estado e no Município, com
algumas dezenas de tempos em escolas particulares de sua cidade e pouco
tempo, muito pouco tempo para si e para os seus. Nas lacunas, o que
sobrava do restrito tempo em casa (algo entre meia-noite e quatro da
manhã), fumava (escondido) e se dedicava à palavra: estudos teóricos do
léxico português.
Era feliz. Ou pensava ser, até receber aquela
proposta, que na hora a fez encher-se de orgulho e logo depois de
terror. A amiga professora de Matemática lhe avisara do concurso
literário que haveria na região, uma excelente oportunidade de mostrar a
todos seu talento e sua acurada percepção lingüística. A princípio,
envaideceu-se com o convite, com o reconhecimento profissional...depois,
desesperou-se, de tal forma que a colega atenta quase percebeu seu
ligeiro rubor de face.
O que escrever? Qual seria o tema de seu
texto? O que descrever, narrar ou dissertar? De repente, Rosa percebeu o
que deveria ser-lhe óbvio desde sempre: a dolorosa percepção de que não
havia assunto para escrever! Nesse fragmento de segundo, sua vida lhe
passara à frente e vira centenas de cenas desfocadas em preto e branco:
sua infância fora mesquinha e solitária, escondida atrás de brinquedos
que nunca usara por medo de estragarem-se; sua escolha universitária foi
feita por seus pais, porque moças de família só poderiam, quando muito,
ser professoras; seu marido era, por conveniência, o irmão do noivo da
prima, um bem sucedido e inculto comerciante local, a quem nunca amou;
seus filhos nasceram sem lhe causarem dor, ou qualquer outro sentimento
que os unisse além dos cordões umbilicais; seus pais eram velhos e
sadios, sem nenhuma morte próxima que viesse lhe causar trauma, pena,
sofrimento ou aprendizagem, ou qualquer coisa da qual ela pudesse tirar
uma lição de vida realmente interessante.
Olhou o papel em branco e
sentiu pena de sua vida enfadonha e correta. Nenhum amor, nenhuma
aventura, nenhum erro, nada havia em sua frente, senão um cotidiano
correto e metódico. Durante horas olhou o caderno pautado, até que as
linhas azuis borraram-lhe os olhos e misturaram-se entre si. Dos livros
que leu, das pessoas que conheceu, não conseguira extrair nada que
pudesse lhe servir como tema. Pensou em escritores famosos e teve raiva,
inveja de todos eles. Pensou em obras lidas, relidas, contadas e
reescritas, nada valeu. Uma madrugada inteira sem que uma palavra lhe
brotasse na mente.
Falta de inspiração, só podia ser falta de
inspiração. Nada que um dia de trabalho não resolvesse. Com as crianças,
certamente adviria uma idéia brilhante ou uma fagulha de reflexão a
desdobrar. Só que, a cada minuto do dia, sua angústia só aumentava, ao
ver palavras multiplicando-se de seus lábios, que de nada valiam ser
escritas. Para quê? O concurso literário pressupunha, como o próprio
nome dizia, literatura, e naquele momento o que a incomodava vorazmente
era perceber que sua vida virara...gramática! Um conjunto de regras e
exceções voltadas para uma modalidade culta, algo que aqueles alunos
famintos e carentes não atingiam, o que os fazia a cada dia menores,
devido àquele abismo lingüístico que os separava e que – ela tinha que
confessar – a enchia de prazer e satisfação, até aquele momento.
Faltou-lhe
o chão aos pés. De que adiantavam os adjuntos e os complementos
nominais, se não lhe davam um assunto, uma literatura? (por mais que
tivesse tentado fazer uma poesia com eles!). De que adiantavam os anos a
fio em sala de aula, ensinando todos os filhos da cidade a escrever, se
ela própria não sabia redigir um texto realmente seu, com suas idéias?
Onde estava sua imaginação, se só no que pensava era corrigir e corrigir
o que os outros diziam ou escreviam?
A dor que sentiu naquele
momento talvez tenha sido a pior de sua vida inteira. Um misto de
angústia, de piedade, de frustração por aquela vida pequena,
desinteressante, escondida atrás de livros alheios em uma cidade do
interior. Foi difícil perceber que as palavras, as quais ela sempre
buscou e perseguiu, nunca lhe vinham na hora adequada porque ela
simplesmente... não as sentia, não as vivia! Sua relação com elas era
mecânica, artificial, passível de correções de certo e errado. Não eram
as palavras quentes que enebriam poetas ou que arrebatavam bocas úmidas
de namorados adolescentes. Não eram os gritos das crianças que brincam
nas praças, ou a comemoração enérgica dos torcedores de futebol. Não
eram as confissões arrependidas, ou o grito de prazer e dor de amantes
apaixonados e lancinantes. Suas palavras não tinham vida, porque ela não
tinha vida. A falta de vivacidade de suas palavras representava seu
fracasso, o seu modo de viver, o grande cinza que era seu cotidiano.
Teve
vontade de correr para um lugar que não existe, longe de tudo e de
todos para viver uma vida sua, sem medo da opinião dos pais, filhos,
marido, vizinhos, amigos, parentes, colegas, alunos etc. A vontade
passou e ela continuou sua rotina exatamente do jeito que era. O
concurso literário era uma bobagem de jovens idealistas e verborrágicos.
Coisa boba e desnecessária. Voltemos às aulas de Gramática.
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