Vejo a foto do menino sendo dilacerado pela mãe, em Veja, e penso no que o fanatismo religioso é capaz de realizar pelo mundo. Sinto uma dor de angústia, alimentada por uma enorme sensação de passividade (por que não dizer nulidade?) frente a tudo que me incomoda. Longe o menino chora, em outra cidade talvez, talvez em outro mundo.
Vou dormir. Não durmo. Acendo a luz. Faz frio. Leio. Lá fora vejo a chuva caindo e os carros passando na rua. Do meu apartamento, no térreo, vejo também pessoas, coadjuvantes diárias do meu filme. Sempre que posso, de propósito, faço a mesma coisa: acendo a luz do abajur, sento no sofá da sala e me escondo por trás das cortinas, mas sempre deixando frestas. Enquanto quem está do lado de fora não me vê, transformo as pessoas em companheiras mudas da minha solidão. Uso as pessoas para não me reconhecer sozinha. Talvez o mundo não tenha jeito e os suicidas tenham razão.
Drummond. Como nunca sei o que ler de Drummond, pego sempre a mesma capa verde, papel que imita folhas da bíblia, coleção da Aguillar. Drummond é a minha bíblia. Panegírico das horas insones. Mas a recorrência da foto do menino é mais forte. A imagem não me sai da cabeça. Nem a poesia conseguiu me sedar nesse momento de vaivéns. Meu Deus, por que me abandonaste?
E comecei a refletir sobre as imagens que me vinham à memória. Longe o menino chora... Será que longe? Da minha fresta vejo uma família vagando nas ruas: pai, mãe, dois filhos, um deles bebê. É madrugada, faz frio... O menino do outro lado do mundo chora e olha em meus olhos. Aquela família também chora, mas um choro silencioso, resignado, esquecido. Senti culpa. Culpa por me indignar com a foto do outro lado do mundo e culpa por não me importar com a dor e o sofrimento que até hoje bateram à minha porta. No fundo, quem chora aqui sou eu.
Continuo com os meus olhos fixos na janela a ver a imagem da dilaceração do ser humano na minha frente. A família foi embora. Do outro lado da rua, um chafariz iluminado, colorido. A imagem é bonita, poética, mas talvez nem a poesia me valha em tempos de indulgência. Flores amarelas e medrosas ainda nascem na minha janela.
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